quinta-feira, 2 de julho de 2009

Quem contrataria Gilmar Mendes para dirigir um jornal?

PERGUNTA QUE NÃO CALA
Quem contrataria Gilmar Mendes para dirigir um jornal?

Por Alberto Dines em 30/6/2009

Mesmo os inimigos do ministro-presidente do STF Gilmar Mendes são obrigados
a reconhecer o seu vasto saber jurídico, sua cultura, sua capacidade de
expressar-se com tanta clareza e elegância como também seu conhecimento do
idioma alemão.

Diante da sua obsessão em demonstrar que o jornalismo não é uma profissão e,
portanto, não precisa ser regulamentado, este Observador sente a necessidade
de repetir, ampliar e reformular a pergunta dirigida ao professor e
ex-ombudsman da *Folha* e do iG Mario Vitor Santos na edição da semana
passada (23/6) do *Observatório da Imprensa* na TV:

– Você contrataria o presidente do STF para dirigir o seu jornal?

Sua Excelência certamente perdoará a provocação cuja única finalidade é
oxigenar e animar um debate que ao longo dos últimos 24 anos serviu para
vocalizar apenas um lado da questão – o dos empresários.

A querela a respeito do diploma, ou melhor, do fim da obrigatoriedade do
diploma para o exercício do jornalismo, é secundária. Outra deve
antecedê-la: jornalismo é profissão, ocupação, ofício, ferramenta de
trabalho? Ou, além disso, também é missão, tal como a de um magistrado,
treinado para destrinchar a dialética dos códigos, administrar a justiça e
ser justo?
*

Ensinar e aprender
*

Este Observador jamais contrataria o ministro Gilmar Mendes para dirigir
qualquer veículo jornalístico apesar do seu imbatível *curriculum* jurídico.
Mas entregaria o seu hipotético jornal a um profissional diplomado em
jornalismo, de preferência com uma pós-graduação profissionalizante, pelo
menos 25 anos de experiência em redações e, principalmente, capacitado para
assumir o papel de mediador, questionador e agente das transformações.

No seu arrazoado contra o diploma e contra a especificidade da profissão de
jornalista, o ministro Gilmar Mendes esquece o seu notório domínio do idioma
alemão. Não lembrou que *Zeitung*, jornal, deriva da raiz *Zeit*, tempo.
Jornalismo em português ou *Journalisme* em francês (de *Jour*, dia,
jornada) são atividades cruciais numa sociedade porque lidam com a passagem
do Tempo. Uma sociedade desatenta para as inevitáveis mudanças está perdida,
torna-se apática ou desarvorada.

Jornalistas marcam o tempo, verdadeiros ritmistas, mas ao contrário dos
relojoeiros lidam com um tempo que não jorra contínuo. O tempo jornalístico
é periódico, marcado pelas sucessivas edições, condicionado para a complexa
tarefa de sintetizar o acontecido no período (daí *periodismo* em espanhol).


Passar ao leitor a sensação de que é testemunha e participante de um amplo
processo exige conhecimentos teóricos, técnicos e também uma disposição
instintiva para pressentir o que é novo e o que importa. Escritores
raramente retomam seus textos depois de impressos. O ponto final é ponto
final mesmo.

Jornalistas são treinados para a infindável tarefa de reescrever-se
continuamente. Este treinamento começa nos bancos das escolas de jornalismo.
Nas redações não há tempo para filosofar. Nem há tempo para olhar-se no
espelho e reclamar. O mundo para os jornalistas é verdadeiramente redondo,
rotativo, rotativa.

É a tal *unendliche Aufgabe* (tarefa infindável), ministro Gilmar Mendes,
citada por Kant. Esta tarefa não é para qualquer um. Não é fruto de um
estalo, golpe de sorte – precisa ser ensinada e aprendida. A perseguição
contínua de uma tarefa é em si, uma atitude claramente profissional.
*

Obra de jornalistas
*

O relatório do ministro Gilmar Mendes estende-se por 91 páginas sobre a
profissão de jornalista e, mesmo sintetizado, jamais seria entendido pelos
leitores de jornal, mesmo de um *quality paper*. Há nele uma ironia que roça
à presunção. É um antijornalismo em estado primitivo. Ao comparar
jornalistas aos chefes de cozinha o ministro Mendes tenta fazer blague. Nós
jornalistas não gozamos as togas usadas nos tribunais, nem mesmo as
ridículas perucas dos magistrados britânicos. Respeitamos as tradições,
somos os primeiros a perceber quando se tornam obsoletas.

O ministro, porém, ignora que sem jornalismo e sem jornalistas os
historiadores teriam que inventar fatos. Ou contentar-se com documentos
áridos, insossos, muitas vezes truncados e às vezes manipulados para
parecerem verdadeiros. A história moderna, a crônica dos últimos 400 anos,
deve muito aos profissionais do jornalismo.

Uma hemeroteca, Excelência, é o panteão da humanidade. Obra construída
majoritariamente por jornalistas. Este Observador não contrataria um
advogado ou mesmo um jurista renomado para montar uma coleção de jornais.
Nem mesmo para editá-los.

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